domingo, 18 de dezembro de 2011

O mundo além do extremo

Emilia Lucinda de Souza, Ilha da Madeira, Funchal
Havia quinze dias que caía uma chuva miúda, sem parar um segundo. Tudo ficara úmido, casas e roupas, com cheiro de mofo no ar. No dia 24 de Outubro de 1842, desabou a tempestade finalmente. A chuva torrencial durou todo o dia. Numa fúria de arrasto a ribeira de João Gomes avançou pela cidade levando consigo casas e gentes. De súbito, as águas entraram nos casebres. A reação de Emília Lucinda de Souza foi tão rápida que não conseguia lembrar como conseguira abraçar e amarrar os meninos contra si, usando as tiras de seu vestido. E lutar contra a correnteza e o frio até chegar a um lugar seguro no alto da Boa Vista. No final dessa rua, a boa senhora lhe acolhera. Muitos de seus vizinhos também tinham ali se abrigado. Outros chegavam com as notícias. Eram grandes os estragos.
No sítio do Ribeirinho, o rio escavou uma vala enorme. No Beco do Cemitério Britânico, onde Emília Lucinda morava, todos os casebres caíram. Pouca gente do bairro do Cemitério conseguira se salvar, não sobrou nada em pé nas travessas das Violetas, das Malvas, do Alecrim, das Papoilas ou da Aldeia.
As calçadas de Santa Clara, do Pico, Bela Vista e Incarnação foram convertidas em caudalosas ribeiras. Ficaram completamente inundadas as ruas do bairro de Santa Maria Maior, o Pelourinho, a Rua dos Medinas e ainda outras, chegando a água a invadir os segundos e terceiros andares das casas. Em muitas ruas da cidade os barcos navegavam para tentar socorrer as famílias que imploravam misericórdia dos últimos andares e telhados.
Durante toda a noite se ouviram gritos de terror pela cidade. “Toda a parte baixa da cidade estava inundada, pois os muros de defesa no litoral serviram para subir mais a água que procurava saída.” (Sarmento, A. A. (1952).
Junto ao fogo improvisado, Emilia Lucinda aninhara os filhos contra si e esperava suas roupas secarem. Ela sabia que Ezequiel Sérgio Veríssimo só poderia encontrar a família muito tempo depois, pois a ponte da Rochinha também tinha sido levada pelas águas. Ela tinha certeza que ele ficaria bem, pois era um sobrevivente como ela. A única herança que receberam de seus antepassados era a mesma que deixariam para seus filhos e netos: a capacidade de resistir às catástrofes, sobreviver sempre. Ela era uma boa costureira. Seus trabalhos eram apreciados por todas as senhoras ricas da Freguesia, e não raro, era chamada até em outras freguesias para executar os bordados ora de um enxoval de um filho que estava para nascer, ora de uma filha que iria se casar. Quando não, Ezequiel levava suas toalhas para vender nos navios ingleses que chegavam ao caís de Funchal. De alguma forma, iriam recomeçar.
Para distrair as crianças, em meio a tanta tragédia, Emília Lucinda contava histórias. Falava de um reino distante chamado Império do Brasil para onde seus primos tinham ido morar. Um dia, quando crescessem, os meninos poderiam atravessar o Atlântico num daqueles navios que aportavam de passagem em Funchal. O Império do Brasil era tão lindo como a Ilha da Madeira, explicava ela, mas sobrava fartura para as ‘gentes dos ofícios’’. Pessoas iguais a eles. Lá poderiam casar com as lindas moças do lugar, ter uma casa bonita, criar filhos sem passar necessidade.
Ezequiel Sérgio, que tinha o mesmo nome do pai, duvidava das palavras da mãe. Era um menino muito prático para acreditar que poderia fazer fortuna num lugar longícuo. Queria dinheiro agora. Logo que crescesse iria fabricar botas, que todos compram. Todos os dias ficava na oficina de seu tio, vendo como se curtia e moldava o couro. Mas a voz da sua mãe lhe acalmava e lhe dava sono. Terminou por dormir profundamente em meio ao caos que lhes cercavam.
José João, o filho mais velho, apesar de tão pequeno, já tinha traçado seu destino. Só se casaria com Virginia Rosa, a formosa vizinha, filha do tanoeiro. A menina sempre lhe sorria e abaixava a cabeça, quando ele chegava para auxiliar seu pai na oficina. Ele já reconhecia qual a melhor madeira e o tanoeiro lhe ensinava como usar suas ferramentas. As palavras da sua mãe lhe embalavam e davam conforto, mas ele já tinha decidido: seria marceneiro.
Só Fernando Maximiano, o mais velho, sonhava junto com a mãe. O mar lhe fascinava. Fernando Maximiano Veríssimo seria marinheiro.
Fontes documentais:
Registros paroquiais do Concelho de Funchal, Freguesia de São Pedro, Freguesia de Santa Luzia, Freguesia da Sé
Bibliografia
Bettencourt, Luísa Catarina Freitas Andrade (2010) MALHA URBANA Nº 10 – 2010
Silva, Fernando Augusto da e Meneses, Carlos de Azevedo (1978) Elucidário madeirense. 4ª ed. Funchal : Secretaria Regional da Educaçäo e Cultura, 1978
Sarmento, A. A. (1952). Ensaios históricos da minha Terra. Ilha da Madeira. Vol. II. Funchal: Junta Geral do Distrito Autónomo do Funchal
Vieira, Alberto (2006) O Bordade de Madeira, Funchal:ed.Bordal-Bordados da Madeira Lda




Dreadful Storm at Madeira “The Illustrated London News” 1842

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